Igor Passos Pires
Ao
escolher minha profissão, decidi que gostaria, acima de qualquer coisa, plantar
sementes; sementes que gerassem pequenas fissuras na estrutura, sementes essas
que possibilitassem novas maneiras de enxergar e produzir o mundo. Entretanto,
ao ter contato com o terreno, percebi que havia mais concreto que terra fecunda
– a escola se mostrou um lugar enrijecido, estratificado. Partindo
do princípio de que a escola é uma instituição disciplinadora, Foucault afirma
que o exercício da disciplina supõe um dispositivo que obrigue pelo jogo do
olhar; um aparelho onde as técnicas que permitem ver induzam a efeitos de
poder, e onde, em troca, os meios de coerção tornem claramente visíveis aqueles
sobre quem se aplicam. (FOUCAULT, M., 1987, p.143). Logo no primeiro contato
com o ambiente escolar, percebi que haveria uma grande batalha pela frente.
De acordo com a Lei de Diretrizes e
Bases, a educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de
liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno
desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua
qualificação para o trabalho (1988). Mas como assegurar o pleno desenvolvimento
do indivíduo, sendo que na maior parte do tempo o que é evidenciado no ambiente
escolar é uma estrutura conteudista? Além da infraestrutura, que mais aprisiona
do que possibilita que os alunos exerçam a liberdade. Uma difícil estrada,
portanto, se abre, estrada essa cheia de pedregulhos. Mas não ignorar as
dificuldades é essencial.
No primeiro semestre de 2018,
ministrei uma oficina de iniciação teatral no Centro Educacional 11, em
Ceilândia. O maior impacto que tive foi a respeito da relação dos estudantes
com a escola. Havia uma falta de brilho nos olhos, uma falta de crença na
efetividade daquela educação.
Deparei-me com alunos que possuíam o desejo de criação, com grande potencial
inventivo, mas que, ao se depararem com o ambiente escolar, acreditavam não
serem bons. Foi preciso portanto trabalhar com, desvendar, redescobrir,
encontrar potência no que aparentemente não possui. Construir junto aos alunos
um ambiente possível de produção de cidadania, de conhecimento, de convivências,
mostrar a eles que os conhecimentos e as potencialidades ultrapassam o concreto
das paredes e da rigidez conteudista de muitos professores. E é a partir de
questões como as citadas acima que precisamos nos atentar a determinadas
propostas atuais, como a reforma do ensino médio e a escola sem partido, que,
em sua essência, limitam e enrijecem mais ainda a estrutura escolar , oferecendo,
em suma, uma estrutura de mundo – ideais, éticas e morais – já prontas,
distanciando os indivíduos de sua inventividade – de identidades, de mundos, de
si próprios – distanciando assim, ainda, do senso crítico a respeito do que
acontece dentro e além dos muros da escola. Nessas situações, como se executa a
finalidade da educação? Existe uma educação plena dos educandos, ou é priorizado
uma formação monocular desta? Como afirma Sônia T. Sousa Penin e Sofia Lerche Vieira,
a escola deve ter uma função voltada para a totalidade do ser humano e não para
partes fragmentadas que interessam o movimento da engrenagem do capital:
A
educação, assim sendo concebida, indica uma função da escola voltada para a
realização plena do ser humano. [...] Tal realização plena do ser humano –
crianças, jovens ou adultos, é alcançada por meio da convivência e da ação
concreta, qualificadas pelo conhecimento. (PENIN, Sonia T. Sousa; VIEIRA, Sofia
Lerche. 2002, p.28).
Na
conclusão de O que é a Filosofia,
intitulada Do caos ao cérebro,
Deleuze e Guattari dissertam um pouco sobre a figura do artista, o caos e, de
certo modo, a produção:
Num
texto violentamente poético, Lawrence descreve o que a poesia faz: os homens
não deixam de fabricar um guarda-sol que os abriga, por baixo do qual traçam um
firmamento e escrevem suas convenções, suas opiniões; mas o poeta, o artista,
abre uma fenda no guarda-sol para fazer passar um pouco do caos livre e
tempestuoso e enquadrar numa luz brusca, uma visão que aparece através da
fenda. [...] Será preciso sempre outros artistas para fazer outras fendas,
operar as necessárias destruições, talvez cada vez maiores, e restituir assim,
a seus predecessores, a incomunicável novidade que não mais se podia ver
(DELEUZE, G. GUATTARI, F., 1992, p.237-238).
Hoje, percebo que minha vontade de plantar
sementes vai ao encontro com o abrir fendas no guarda-sol. É necessário
produzir deslocamentos, fissuras na estrutura hegemônica. É necessário estar
aberto a produzir encontros e sustentar as fendas abertas. A escola é um lugar
de produção – de indivíduos, de mundos, de pensamento, de conhecimento – assim
sendo, eu enquanto professor, devo percorrer caminhos que possibilitem esses outros lugares. Percorrer caminhos em
que a realidade e as potências de meus alunos sejam levadas em conta, levadas
em conta para a criação, para que o que se ensina entre em contato com questões
que os atravessam.
Além
disso, é necessário se fazer um questionamento: como minha matéria pode
interferir na vida dos alunos? Ou ainda: como a realidade dos alunos interfere
no modo como proponho minha aula? Como sou afetado por esses corpos? É preciso
lembrar sempre que a educação é produção e não aplicação de mundos
pré-existentes. Para isso, vejo que é necessária uma ética da educação; no
campo das artes, uma ética-estética. Uma ética-estética que vise o trabalho com
o que tange não apenas o racional, mas também o sensível. Construir um espaço
em que não haja uma hierarquia professor-aluno, mas que as duas partes possam
exercer seu senso crítico e sua potência criativa, visando sempre a produção de
um mundo melhor.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL.
Lei nº9.394 de 20/12/1996 e atualizações. Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/l9394.htm
>
DELEUZE,
G. GUATTARI, G. Conclusão – do caos
ao cérebro in O que é a filosofia?, Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.
FOUCAULT,
Michel. Os corpos dóceis. In Vigiar e Punir. Ed. Vozes. Petrópolis. 1987
PENIN,
Sonia T. Sousa; VIEIRA, Sofia Lerche. Refletindo sobre a função social da
escola. In: VIEIRA, Sofia Lerche (org.) Gestão da Escola. Desafios a enfrentar.
Rio de Janeiro: DP&A, 2002. P. (Biblioteca ANPAE). P.13-45
Nenhum comentário:
Postar um comentário