terça-feira, 10 de julho de 2018

CRITICIDADE E RELAÇÃO CONTEÚDO-REALIDADE





Manuela Vitória Sacramento Martins

         Na Constituição Federal de 1988, temos no artigo 205 que a educação, enquanto um direito de todos, visa o “pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.” No artigo 207, que diz respeito exclusivamente às universidades, é estabelecido que estas devem obedecer “ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão.” Sendo extensão a função social da universidade, ela se estabelece como a articulação do conhecimento científico advindo do ensino e pesquisa com as necessidades da comunidade na qual a instituição se insere, visando transformar a realidade e promover o desenvolvimento social. Esses dois artigos nos levam à conclusão de que a principal função da educação, tendo como as duas instituições principais a escola e a universidade, está relacionada fundamentalmente ao desenvolvimento crítico dos indivíduos em relação à sua realidade, visando transformá-la.
         Isso nos leva a refletir se esse objetivo da educação tem sido alcançado no Brasil de maneira satisfatória, e de acordo com todas as discussões e estudos realizados em sala, chegamos à uma resposta negativa. Vimos, baseados em leituras críticas e debates, que a educação, principalmente nas escolas, tem se tornado cada vez mais uma importante peça do quebra-cabeça neoliberal, atendendo às demandas do mercado e não auxiliando os alunos a tornarem-se críticos em relação a seu contexto, sua vivência e a si mesmo, e sim uma educação conteudista que visa resultados em vestibular ou oferecer mão de obra para o mercado de trabalho. Assim, torna-se, nos termos de Paulo Freire, uma “educação bancária”, na qual os professores depositam o conteúdo em seus alunos e depois de um tempo resgatam esse “conhecimento” através de uma avaliação, podendo ser provas da escola ou o resultado dos vestibulares/Enem. Além disso, esse autor vai afirmar que a prática educativa, ao treinar e adaptar o educando a uma realidade que não pode ser mudada, obedece à uma ideologia fatalista que anima o discurso neoliberal (FREIRE, 1996).
       Porém, para alcançar o que nos diz a Constituição sobre o desenvolvimento da pessoa e seu preparo para exercer a cidadania e superar o modelo de educação que temos majoritariamente no Brasil hoje, uma das principais mudanças que deve ocorrer é a adaptação dos conteúdos à realidade dos alunos. Dessa forma, as relações feitas entre os conteúdos científicos e sua vivência no mundo tornaria os estudantes cada vez mais críticos. O que se apresenta neste texto como uma proposta para alcançarmos a educação que queremos tem base legal, por exemplo, na LDB, que “prevê flexibilidade no que se refere às formas de organização escolar, permitindo que se atenda às peculiaridades regionais e locais, às diferentes clientelas e necessidades do processo de aprendizagem (art. 23).” (PENIN; VIEIRA, 2002, p. 21)
       Entretanto, uma aplicação efetiva dessa conexão se faz necessária, uma vez que, nos anos 90, Paulo Freire, patrono da educação brasileira e grande teórico da área, já nos alertava para a importância do respeito aos saberes dos alunos e da relação com seu contexto.
Por que não discutir com os alunos a realidade concreta a que se deva associar a disciplina cujo conteúdo se ensina, a realidade agressiva em que a violência é a constante e a convivência das pessoas é muito maior com a morte do que com a vida? Por que não estabelecer uma necessária “intimidade” entre os saberes curriculares fundamentais aos alunos e a experiência social que eles têm como indivíduos? Por que não discutir as implicações políticas e ideológicas de um tal descaso dos dominantes pelas áreas pobres da cidade? A ética de classe embutida neste descaso? Porque, dirá um educador reacionariamente pragmático, a escola não tem nada que ver com isso. A escola não é partido. Ela tem que ensinar os conteúdos, transferi-los aos alunos. Aprendidos, estes operam por si mesmos. (FREIRE, 1996, p. 15)
 
          A escola deve, usando termos e ideias concebidos pela UNESCO nos anos 90, ser um espaço onde aprende-se a conhecer (domínio dos instrumentos de conhecimento, aprender a aprender), aprende-se a fazer (além da qualificação profissional, envolve aquisição de competências para as diferentes experiências sociais), aprender a conviver (descoberta e respeito ao outro e participação de projetos comuns) e aprender a ser (contribuição para o desenvolvimento total da pessoa, envolvendo criticidade e aspectos subjetivos do ser humano) (PENIN; VIEIRA, 2002, p. 27 e 28). Essa educação, então, se volta para o pleno desenvolvimento da pessoa do qual trata a Constituição, dando ênfase às duas últimas aprendizagens, e isso se constrói através, principalmente, da inserção dos conteúdos e da escola em si num contexto, relacionando-os diretamente à realidade.
      Dessa forma, nenhum currículo pode ser consolidado por muito tempo, se fazendo necessário “um repensar constante sobre sua contemporaneidade, ou seja, sua atualidade e sua adequação ao que está acontecendo no mundo real. Os alunos precisam de conhecimentos que lhe sirvam para melhor entender a sociedade global e melhor conviver e agir em sua comunidade e no seu trabalho.” (PENIN; VIEIRA, 2002, p. 29).

REFERÊNCIAS
CONSTITUIÇÃO FEDERAL. Artigos sobre educação. Disponível em: <http://www.mpgo.mp.br/portalweb/hp/10/docs/constituicao_federal_de_1988_-_da_educacao.pdf>.
EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA. Disponível em: <http://www.proex.ufes.br/o-que-%C3%A9-extens%C3%A3o-universit%C3%A1ria>.
FREIRE, P. (1996) Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. 25ª ed., São Paulo: Paz e Terra (Coleção Leitura).
PENIN, Sonia T. Sousa; VIEIRA, Sofia Lerche. Refletindo sobre a função social da escola. In: VIEIRA, Sofia Lerche (org.) Gestão da Escola. Desafios a enfrentar. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. (Biblioteca ANPAE).


Nenhum comentário:

Postar um comentário

A CULTURA NA EDUCAÇÃO: CONSTRUÇÃO E DESENVOLVIMENTO DA IDENTIDADE                                                                    ...