AS ESCOLAS SE TORNAM O TÚMULO DA
POESIA: É HORA DE PEDIR SOCORRO AOS CONHECIMENTOS TRADICIONAIS
Ian Viana
"A escola se coagulou
em Galinheiro onde se chocam a histeria, o torcicolo & a repressão sexual,
não existindo mais saída a não ser fechá-la & transformá-la em Cinema onde
crianças & adolescentes sigam de novo as pegadas da Fantasia com muita
bolinação no escuro".
- Roberto Piva
Nos tempos em que os alunos nada mais
são do que números, máquinas programadas para passar no vestibular, o stress é
exaltado como virtude e as individualidades são cerceadas, é mais do que
necessário refletir: para onde nosso modelo educacional está nos levando?!
Em uma entrevista à Rede Globo, por
exemplo, "(...)
O diretor pedagógico de uma rede de escolar cujo lema é a frase “Yes Stress”,
diz que o assunto estresse chega a ser recorrente com pais de alunos:
"Explicamos que a escola é adepta ao ensino conteudista [que privilegia o
conteúdo, a quantidade do conhecimento] e que o estresse pode funcionar como
motivador (...)".
Já devia estar mais do que clara, a
ineficácia de uma figura secularmente datada ( um professor, dotado de todo
saber, elevado frente à alunos e alunas normatizados pelas regras e rotina
escolar, depositando "conhecimento", como se fossem uma velha caixa
de madeira, uma coisa, que dentro de alguns minutos, semanas, ou meses será
esquecerá o que "aprendeu". Nesse sentido, Paulo Freire aponta:
A educação “bancária” pressupõe uma relação
vertical entre o educador e educando. O educador é o sujeito que detém o
conhecimento, pensa e prescreve, enquanto o educando é o objeto que recebe o
conhecimento, é pensado e segue a prescrição. O educador “bancário” faz
"depósitos" nos educandos e estes passivamente as recebe. Tal
concepção de educação tem como propósito, intencional ou não, a formação de
indivíduos acomodados, não questionadores e que se submetem à estrutura de
poder vigente. É o rebanho que como uma massa homogênea, não projeta, não
transforma, não almeja ser mais. (FREIRE, 1971)
E mais:
“Na verdade, o que
pretendem os opressores é transformar a mentalidade dos oprimidos e não a
situação que os oprime, e isto para que, melhor adaptando-os a esta situação,
melhor os domine”.
“A questão
está em que, pensar autenticamente, é perigoso”. Mas, perigoso para quem?
Apenas para aqueles que vêem como ameaça a transformação, uma vez que são estes
os únicos beneficiados pela situação vigente. Sentem-se ameaçados pelo pensar
autêntico os dominadores, os que negam a comunicação e que impõem suas
concepções aos outros com o propósito único de manter estático o estado de
coisas sempre a seu favor. (Ibidem)
Coisas não podem aprender.
O aprendizado não pode ser um
"depósito", como bem dizia Freire. É muito maior. Vai muito além.
Aprender é pensar e se realocar no mundo: a história não é um fato datado,
ultrapassado, reservada aos museus, pelo contrário. a história ocorre
justamente enquanto você lê esse texto, enquanto decide por A, ou B, enquanto
interpreta e está apto - por conhecer-, a realidade em que vive. Seres humanos
educados como coisas, nada mais podem seguir que o caminho das coisas, o
caminho do conformismo, o caminho da morte, o caminho da
"necrofilia", como diria Erich Fromm, psicanalista de grande
importância teórica para Freire:
O indivíduo necrófilo ama
tudo o que não cresce, tudo o que é mecânico. É movido por um desejo de
converter o orgânico em inorgânico, de olhar a vida mecanicamente, como se
todas as pessoas fossem coisas.
Todos os processos, sentimentos e
pensamentos da vida se transformam em coisas: a memória vale mais que a
experiência e ter vale mais do que ser. Esse indivíduo se realiza com um
objeto, somente se o possui. Em consequência, uma ameça a sua posse é uma
ameaça a ele mesmo. Se perde a sua posse, perde o contato com o mundo. Ama o
controle e o ato de controlar. Mata a vida.
E matar a vida, é realmente a última,
das últimas opções que à educação queira reservar à humanidade (ou pelo menos
deveria).
Continuemos: o que se vê na figura
acima? Há quem associe essa resposta à verdadeira “inteligência”. Você pode se
perguntar, “e como isso, se o que vemos claramente é um chapéu”!? Fácil: porque
não precisa ser um chapéu.
(imagens do livro “O Pequeno
Príncipe”, de Saint-Éxupery)
É engraçado como a gente às vezes
apenas considera a ideia de que uma pessoa inteligente é aquela que acumulou
mais conhecimentos. Mas o que fazem/conseguem fazer essas pessoas cultas com
seus conhecimentos, isso não é importante? Dialogando com esse raciocínio,
Jorge Luis Borges criou certa vez um personagem um tanto quanto diferente,
“Funes, o Memorioso”.
Funes apresentava uma característica
muito específica que o diferenciava de todos os outros seres humanos: ele
gravava todas as informações das coisas e ideias com que tinha contato, e nunca
mais esquecia. Inteligente, né? Duvidoso. Segundo Borges, Funes “Havia
aprendido sem esforço o inglês, o francês, o português, o latim. Suspeito,
contudo, que não era muito capaz de pensar. Pensar é esquecer diferenças, é
generalizar, abstrair. No mundo abarrotado de Funes não havia senão detalhes,
quase imediatos.” (Conto “Funes, o Memorioso”).
Passam tanto tempo nos ensinando a memorizar
que acabamos esquecendo, no meio de tantos detalhes imediatos, que é importante
aprendermos a pensar, inovar e questionar. De nosso ensino infantil à
universidade convivemos com um mesmo modelo: sala de aula, um sistema de séries
que não necessariamente coadunam com nossas condições e competências, 40 outras
crianças/jovens/adultas que não necessariamente estão com os mesmos interesses
de conhecimento a serem aprendidos, um(a) professor(a) e um tanto de horas por
dia olhando, copiando e memorizando.
Não nos levem a mal, entendemos a
importância de “conteúdo acumulado”. A questão é como raios estamos buscando
acumulá-lo e principalmente: por quê? Para quê? Ou melhor, para quem?
Desde a infância, passeios infantis,
trabalho de campo, extensão, o mundo “lá fora”? Isso é exceção. E ou precisa de
autorização dos pais, ou não vale nada dentro da ordem meritocrática que diz se
você está ou não pronto para a próxima série dessa escada acadêmica - são
opcionais. Em um sistema em que a regra é memorizar e conhecer é a exceção,
fica difícil aprender a pensar, questionar e desejar criar. Talvez, fosse o
ideal que pedissem autorização para dar aulas, ao invés dos passeios!
“Prezados pais, estamos tentando
fazer com que seus filhos e filhas aprendam algo - que poderíamos auxiliá-las a
aprenderem por si mesmos, de maneiras mais eficientes e efetivas -
exclusivamente por meio de um método medieval de suposta transferência de
conhecimento”.
Isso talvez seja o pior, o modelo é
ruim inclusive para o que se preza. Quem diz que memoriza bem as coisas ouvindo
os outros falarem por horas sem parar com certeza também tem uma habilidade
única, como o Funes. Mais fácil pegar um caderno “bom” e ler em casa, né? Fazer
exercícios, quem sabe. Se for um dia antes da prova, melhor ainda! Fica mais
fresco na memória...
Mas e ai? O que vocês acham que a
gente pode fazer, então? Provavelmente, se for a primeira vez que você se fizer
essa pergunta, você responderia: nada. É assim que o mundo é, não tem como
mudar. É que só aprender a memorizar também traz o grande problema colateral de
esquecermos que não existe uma só resposta para um problema, a gente esquece
que dá sempre para ser de uma forma diferente. Isso é importante: não há só um
modelo - mesmo. A gente está tão acostumado a perguntar “como as coisas são”
para decorá-las e passar na prova que esquecemos de perguntar “como as coisas
podem ser?”, e elas sempre podem ser.
A esperança fracassa
muitas vezes, a dor jamais. Por isso alguns crêem que mais vale dor conhecida
que dor por conhecer. Crêem que a esperança é ilusão. São os iludidos da dor.
(Juel Gelman, página 83)
Num modelo educacional efetivamente
preocupado em ensinar; pensar e inovar devem ser questões centrais de sua
estrutura. Precisamos deixar de ser iludidos da dor e nos tornamos sonhadoras e
sonhadores: e que não sonhemos os sonhos irreais que dormem e nos embalam
através de uma noite tranquila - mas que instigam, movem, incitam,
transformando o real, que desafiam a dor bem desperta do dia-a-dia heteronormativo,
injusto, racista, machista e classista. Sonhos que se constroem na esperança de
repensar o que insistem em dizer, enquanto somos agredidos, que não podemos
refletir a respeito.
A ausência dessa intenção de pensar diferente,
de criar, complica bastante uma real utilização de nossa “inteligência”. E essa
aversão à criação se mostra, visivelmente, no nosso modelo de ensino -
totalmente baseado na sala de aula: “vamos hoje discutir história e a política,
abram na página 52”. Nenhuma dessas e desses docentes, e de nós discentes já
pensou que o mundo é muito mais do que um caderno decorado e exercícios
fixados? São tantos grupos, sociedades, diversas formas de pensar o número, o
cálculo, o errado, o correto, o pecado e o belo que isso não poderia caber numa
aula de 2 horas em um dia de sua vida. E ajudará muito menos ter infinitas
aulas de 2 horas em todos os dias de sua vida, se nós esquecermos que o que
estudamos está lá fora.
E ah, vale ressaltar que isso não é
uma aversão completa e total a ideia de uma sala de aula. De vez em quando esse
modelo - com diversas mudanças pedagógicas - pode ser útil, mas um modelo de
educação não poderia conceber a exclusividade da sala como “regra”. Educação
pede bem mais que isso: pede pesquisa, pede extensão e manifestação social.
Pede pulsar. Conhecer é viver e estudar, ouvir, produzir e argumentar.
Memorização passa, conhecimento fica. É nesse sentido que as sociedades
tradicionais brasileiras merecem destaque. Sua forma centrada na oralidade, na
coletividade e no contato com o meio e com os outros é facilmente perceptível
dos Kalungas aos Yanomamis.
Nossa educação, como bem alertou Pier
Paolo Pasolini já nos anos 70, se tornou uma mera reprodução dos valores da
classe média: o consumo, a competição, a individualidade e a especificidade
como motes fundamentais. Isso é totalmente o oposto do que se acompanha em
comunidades tradicionais. São essas os raros - e talvez últimos espaços onde
resta qualquer senso de coletividade, bem como um real "pacto" do
aprender visto que esse, para além de inserir indivíduos no mercado de
trabalho, tem como foco a vida da comunidade. O saber "braçal" e
"intelectual" se unem para isso. Antonio Bispo, importante liderança
quilombola brasileira que atualmente tenta fundar uma escola completamente
quilombola em seu município de origem, em suas palestras, sempre faz a seguinte
pergunta: por que vivemos em uma sociedade que precisa de creches e de
asilos?" A resposta, após o silêncio monumental, é enfática: vivemos em
uma sociedade que não pensa nos seus indivíduos. Só pensa na produção. Crianças
e velhos não produzem, pra quê, então dedicar tempo e esforços a eles?
Alguns projetos aparecem como essa
alternativa de inserção de saberes tradicionais. Ainda são poucos, é verdade.
Normalmente um ou outro líder (quando não alguém de fora que fale sobre algum
povo) é convocado da dar palestras em escolas e universidades. O que ainda é
pouco. Se almejamos uma real transformação educacional precisamos mirar nos
currículos e é isso que o projeto "Encontro de Saberes", criado na
UNB, visa. Idealizado por José Jorge de Carvalho, reconhecido antropólogo da
Universidade de Brasília, influenciado pelos maiores folcloristas da história
de nosso país, sabe da potência de nossa cultura tradicional em nosso Sistema
Educacional.
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